Maestro David Machado
Por Luiz Paulo Horta
Fundador de orquestras como a Sinfônica Jovem do Rio de Janeiro e a Sinfônica da Juventude do Mercosul, David Machado deixou uma poderosa marca no meio musical brasileiro ao falecer em 1995, aos 57 anos. Lembro até hoje da primeira vez que o ouvi reger: era um concerto da Orquestra Sinfônica Brasileira, em 1981, e o programa incluía a Quarta Sinfonia de Brahms. A OSB estava em boa fase, talvez no melhor período, mas eu não estava preparado para o que iria acontecer. Cito a crítica publicada a 28.4.1981 no "Jornal do Brasil":
“Regendo a Quarta, David Machado acerta o tom desde o início; mas sem alarde. É um maestro de poucos gestos, gestos sóbrios. Não força o impacto desta grande obra: deixa que a Quarta se ponha em movimento com a gravidade que caracteriza todo Brahms. É uma nobre elegia, tem os acentos nostálgicos do último Brahms. Mas esse Brahms tardio era também alguém que sabia tudo sobre a forma musical, sobre o princípio construtivo. Temas que seriam apenas belos nas mãos de um compositor menor encadeiam-se num processo que vai ganhando em densidade. A sinfonia caminha por acumulação, e não por paroxismos. E de repente acontece o inesperado: torna-se impossível saber que orquestra está tocando - e isso nem vem mais ao caso. Produz-se o milagre da transmutação artística. A OSB, a orquestra que conhecemos com suas qualidades e defeitos, é apenas o meio transmissor da alquimia imaginada pelo compositor. Estamos diante da Quarta, de uma tremenda entidade musical - e não diante da OSB, de David Machado, do Teatro Municipal com seus frisos e desvãos”.
Essa impressão de milagre se repetiria em outras ocasiões; por exemplo, em abril de 1983, quando David regeu o Requiem de Brahms com a orquestra e coro do Teatro Municipal. Dizia a crítica publicada no "Jornal do Brasil":
"Imprecisões ainda existiram na própria execução do Requiem. Mas os milagres independem de condições materiais: o Requiem do maestro David Machado mereceria ser ouvido no Carnegie Hall, na Concertgebouw, em qualquer grande sala de concertos do mundo"
Também desse concerto guardei uma vívida memória. Era evidente, naquele momento (embora o coro do Teatro Municipal atravessasse um período de fastígio), que as condições materiais eram desfavoráveis. A orquestra tinha acabado de fazer a "Salomé" de Richard Strauss; não houvera tempo suficiente de ensaios; e nem a orquestra atravessava fase tão boa quanto a do coro.Mas David chegava, punha a mão na massa - e alguma coisa acontecia, beirando o milagroso. Não lembro de outro músico brasileiro que tivesse me causado esta impressão.
Não por acaso, os dois exemplos citados são de Brahms - e David, como mencionei em outra crítica, tinha uma "embocadura" especial para Brahms, uma afinidade especial. Mas não era só Brahms; era todo o mundo do alto romantismo austro-germânico. Também não por acaso, ele dedicou a Bruckner uma atenção especial, como contou a "VivaMusica" em abril de 1995, pouco antes de morrer:
“Descobri o mundo fascinante de Anton Bruckner, compositor a quem me dediquei como um sacerdote, introduzindo-o na própria Itália, e também no Brasil, Uruguai e México. Ao descobrir Bruckner, cheguei fácil e estruturado ao mundo de Gustav Mahler, a quem também dediquei um especial amor”.
São experiências que se tocam (e como fica ridículo, nesse contexto, opor Brahms a Bruckner, como faziam críticos do século passado, sobretudo o famigerado Hanslick ...). É o segredo das mais amplas estruturas sinfônicas que existem (e lendo a confissão de David, lembramo-nos de Bruno Walter, que também descobriu Bruckner na alta maturidade e dele se tornou apóstolo).
É o segredo de uns poucos maestros: quantas e quantas versões medíocres conhecemos de Brahms ou Mahler vindas de maestros famosos. É que não basta ser famoso para ter a pista de um segredo artístico. Maestros e solistas não nasceram para tocar qualquer coisa embora a isto sejam forçados, muitas vezes, pela política do mercado.
No caso de David, intuição e formação se deram as mãos - e até oportunidades surgidas no decurso da vida profissional. Nascido em Minas Gerais em 1938, ele teve a sorte de trabalhar com os maiores mestres.
Estudando piano e composição em São Paulo, entrou no campo de atração de um Camargo Guarnieri. Aos 22 anos seguia para a Alemanha, com bolsa de estudos do DAAD, e na Academia Superior de Música de Freiburg beneficiou-se da orientação de Zimmermann e de Wolfgang Sawallisch - regente com quem, mais tarde, ele mostraria tanta afinidade (pois é um outro mestre do romantismo tardio).
Podia ter ficado nessa tradição alemã; mas nesse caso não teria sido tão completo. Sua boa estrela levou-o para a Itália, onde participou muitas vezes do festival de Siena e estudou o repertório operístico com Franco Ferrara e o ilustre Celibidache. Passado algum tempo, ei-lo diretor da orquestra do Teatro Massimo, de Palermo, onde ficou doze anos - toda uma iniciaçao à musicalidade italiana.
E assim ele foi desdobrando as suas asas, regendo na Inglaterra, Alemanha, Holanda, Bélgica, Bulgária, Portugal, França, Suíça e Estados Unidos da América. Sua carreira sul-americana não foi menos rica, incluindo uma longa e profunda convivência com a principal orquestra de Montevidéu (Ossodre), da qual foi Maestro titular e Diretor Artístico duas vezes, e com a Orquestra Simon Bolívar, da Venezuela, onde foi presença constante durante 20 anos. Neste período na Simon Bolívar, foi sob sua experiente regência que a orquestra fez suas primeiras incursões no repertorio de Mahler, Bruckner e Richard Strauss. Ainda na América do Sul, David regeu no Teatro Colón de Buenos Aires e em diversas orquestras mexicanas. Em seus últimos anos, já ingressava no cenário asiático, regendo no Japão e, sobretudo, na Coréia com repertório operístico.
A morte o chamou, inesperadamente, quando estava a ponto de assinar um contrato com a Orquestra de Munique, que regeria como convidado na temporada 97/98, e para a qual já programava todo um repertório de música brasileira.
Em sua pátria, foi regente titular da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (em dois períodos), da Sinfônica de Minas Gerais, da Sinfônica do Teatro Municipal de São Paulo e presença constante por longas temporadas no Municipal do Rio de Janeiro.
Capítulo especial foi a sua dedicação aos jovens, tendo criado a Sinfônica Jovem do Rio de Janeiro e a Sinfônica da Juventude do Mercosul. Tenho também vívido na lembrança o trabalho que ele começou a desenvolver com os músicos jovens do Rio de Janeiro, fazendo-os, por exemplo, enfrentar o ciclo das nove sinfonias de Beethoven, embora, tecnicamente, não estivessem preparados para isso: achava, de maneira característica, que grandes desafios forjam o gosto e o caráter.
Uma figura dessa estatura musical não se substitui. Mas ele também era, em outros terrenos, uma personalidade multifacetada, apaixonado pela cultura do século XX e pelas boas coisas da vida. Casou-se três vezes e teve duas filhas - Claudia e Victoria. Sua falta continua a ser sentida no Brasil e no exterior.